"Papo-furado"
Autor: Joaquim Ferreira dos Santos
PAPO-FURADO
Então, o que que acontece?!...
Eu poderia desancar os estilistas que uniformizaram todas as mulheres desse verão que se finda com batas de grávida. Poderia mandar para o paredão essa culpa brasileira de no início de cada ano reescrever as injustiças nacionais com telefonemas para o “Big Brother”. Aplaude-se hoje, trancados na casa da Globo, aqueles que vão ser apedrejados amanhã quando saírem às ruas.
Se me sobrasse alguma gana assassina, e a indignação é a herança maior que o jornalismo me deixou, poderia passar a limpo também essa corja de políticos que suja o destino do Rio e avacalha — só dizendo assim mesmo, vai encarar?! — o que nos era antes calçada limpa e amor próprio. O verão acabou. Apareceu o Severino, desapareceu o Bobby Short. A sensação que eu tive foi de ter estado tudo o tempo todo coberto por aquela tsunami de fumaça do réveillon. Nenhum biquíni novo, nenhuma musa sem ele. Aos ouvidos deste crítico de comportamento de Segundo Caderno tudo soou deletério como essa gente que nos últimos três meses apareceu falando, falando, geralmente falando um monte de incongruências verbais, com períodos enooooooormes feito esse. De repente, para ganhar fôlego, talvez ordenar os pensamentos, mas principalmente esconder a falta que um bom livro lhe faz, a pessoa dá um breque e se exclama, e se reticência, e se pergunta a sigo própria: “Então, o que que acontece?!...”
Quando alguém coloca no fim da frase o paralelepípedo do “então, o que que acontece”, eu começo imediatamente a pensar em outra coisa que esteja acontecendo alhures. Dali eu sei que não vai acontecer bolhufas. Não há desacontecimento maior nos últimos tempos da língua falada. Nem o “a nível de” foi mais famigerado. Nem o “enquanto mulher”, “enquanto profissional”. Nada é mais lamentável do que, no meio de um discurso sem graça, a pessoa provocar um gancho para que ela própria continue o assunto, sobre o qual só ela está interessada, na frase seguinte.
No futebol, o equivalente seria o jogador dar um passe para ele mesmo. Na televisão, você já viu esse personagem. É um filho bastardo do ‘seu’ Rolando Lero, da escolinha do Chico Anysio. Na política, o exemplo clássico é o ministro da Cultura Gilberto Gil. Haja guariroba!
“Então, o que que acontece” é sucedâneo de outro abominável homem das neves desse tipo de tique-tique nervoso coloquial — o “veja bem”. Se alguém larga um “veja bem” no meio do papo, eu imediatamente fecho os olhos e, veja bem, parto numa nave fictícia para os braços do meu amor em Vênus. De alguém com um cacoete desses não virá qualquer ajuda para se ver melhor o que quer que seja. Lula, por exemplo. Ele fala “veja bem” o tempo todo. Alguém tem visto alguma coisa em seu governo? Então, o que que acontece?!...
Esses tremoços lingüísticos, e outro recente foi o abuso no gerúndio das garotas do telemarketing, trazem todos a mesma característica pernóstica, afetada, feita para disfarçar o desacontecimento intelectual de quem fala. É tudo lero. Não se dê ao trabalho. É apenas uma moça profissionalmente simpática do outro lado da linha que vai estar tentando vender um seguro Bradesco do jeito ridículo que a ensinaram. Ela joga gerúndios para cima dos verbos, dúzias de “que que acontece” para fixar as vírgulas. Usa essas armas do mesmo jeito que bandidos no Rio jogam spray de pimenta nos olhos da vítima. Para confundir. Obnubilar a razão. Esconder seus projetos desinteressantes e falta de recursos para levar a vida com um discurso dentro do que deveria ser o bom padrão.
Eu desconfio de quem fala com a boca cheia. Não de comida, que tem umas crianças lindas assim. Mas de boca cheia de palavras. Aprendi com o poeta que é preciso usar a faca afiada e enxugar a gordura verborrágica que, por nossa ignorância atávica, fomos acostumados a curtir nos deputados baianos, nos advogados paulistas, nos camelôs cariocas e nos pastores das universais do reino disso e daquilo. Uma das glórias nacionais é o sujeito que “fala bonito”. Geralmente não passa de um perdulário das palavras. Gosta do volume que elas fazem na orelha do próximo. Dá preferência às mais complicadas do dicionário e gosta de juntá-las, uma atrás da outra, nem aí para o fato de não estarem significando senso algum. Então, o que que acontece?!... A grande platéia brasileirinha, que tem como requinte estético o malabarista de circo equilibrando garrafas, reconhece o pseudo-artista do verbo com a nova sardinha no focinho — e vibra invejosa de tanta falsa cultura.
É o país que consagra quem “leva na lábia”, dos mestres na “conversa de cerca Lourenço” e do papo-furado todo fim de noite num bar do Leblon. Alguns preferem imputar bobagens da informática, outros otimizam ridículos da reengenharia do escritório. Todos querem disfarçar com petulâncias acrobáticas ao redor da língua o triste fato de não terem aprendido o que falar com ela. Então, o que que acontece?!.... Esse novo maneirismo pedante, um chamamento da atenção para algo sensacional que estaria prestes a ser dito, um grito de alerta para a possibilidade de ser revelado na frase seguinte o anúncio do terceiro milagre de Fátima ou a dura verdade dos fatos por sua autoridade máxima — esse “então, o que que acontece” é só o zero semântico. O vazio absoluto, o silêncio das línguas cansadas de não ter o que dizer.
Veja bem. Não acontece nada.
(Joaquim Ferreira dos Santos)
A Cemile me mostrou o jornal e disse que eu deveria ler porque o texto era muito bom. Desde então, não consigo me conter quando algum professor solta um "veja bem", "... que que acontece". Acontece que a gente começa a rir e ninguém deve entender nada.
Nem sei se eu falo essas coisas. Sinceramente.
Autor: Joaquim Ferreira dos Santos
PAPO-FURADO
Então, o que que acontece?!...
Eu poderia desancar os estilistas que uniformizaram todas as mulheres desse verão que se finda com batas de grávida. Poderia mandar para o paredão essa culpa brasileira de no início de cada ano reescrever as injustiças nacionais com telefonemas para o “Big Brother”. Aplaude-se hoje, trancados na casa da Globo, aqueles que vão ser apedrejados amanhã quando saírem às ruas.
Se me sobrasse alguma gana assassina, e a indignação é a herança maior que o jornalismo me deixou, poderia passar a limpo também essa corja de políticos que suja o destino do Rio e avacalha — só dizendo assim mesmo, vai encarar?! — o que nos era antes calçada limpa e amor próprio. O verão acabou. Apareceu o Severino, desapareceu o Bobby Short. A sensação que eu tive foi de ter estado tudo o tempo todo coberto por aquela tsunami de fumaça do réveillon. Nenhum biquíni novo, nenhuma musa sem ele. Aos ouvidos deste crítico de comportamento de Segundo Caderno tudo soou deletério como essa gente que nos últimos três meses apareceu falando, falando, geralmente falando um monte de incongruências verbais, com períodos enooooooormes feito esse. De repente, para ganhar fôlego, talvez ordenar os pensamentos, mas principalmente esconder a falta que um bom livro lhe faz, a pessoa dá um breque e se exclama, e se reticência, e se pergunta a sigo própria: “Então, o que que acontece?!...”
Quando alguém coloca no fim da frase o paralelepípedo do “então, o que que acontece”, eu começo imediatamente a pensar em outra coisa que esteja acontecendo alhures. Dali eu sei que não vai acontecer bolhufas. Não há desacontecimento maior nos últimos tempos da língua falada. Nem o “a nível de” foi mais famigerado. Nem o “enquanto mulher”, “enquanto profissional”. Nada é mais lamentável do que, no meio de um discurso sem graça, a pessoa provocar um gancho para que ela própria continue o assunto, sobre o qual só ela está interessada, na frase seguinte.
No futebol, o equivalente seria o jogador dar um passe para ele mesmo. Na televisão, você já viu esse personagem. É um filho bastardo do ‘seu’ Rolando Lero, da escolinha do Chico Anysio. Na política, o exemplo clássico é o ministro da Cultura Gilberto Gil. Haja guariroba!
“Então, o que que acontece” é sucedâneo de outro abominável homem das neves desse tipo de tique-tique nervoso coloquial — o “veja bem”. Se alguém larga um “veja bem” no meio do papo, eu imediatamente fecho os olhos e, veja bem, parto numa nave fictícia para os braços do meu amor em Vênus. De alguém com um cacoete desses não virá qualquer ajuda para se ver melhor o que quer que seja. Lula, por exemplo. Ele fala “veja bem” o tempo todo. Alguém tem visto alguma coisa em seu governo? Então, o que que acontece?!...
Esses tremoços lingüísticos, e outro recente foi o abuso no gerúndio das garotas do telemarketing, trazem todos a mesma característica pernóstica, afetada, feita para disfarçar o desacontecimento intelectual de quem fala. É tudo lero. Não se dê ao trabalho. É apenas uma moça profissionalmente simpática do outro lado da linha que vai estar tentando vender um seguro Bradesco do jeito ridículo que a ensinaram. Ela joga gerúndios para cima dos verbos, dúzias de “que que acontece” para fixar as vírgulas. Usa essas armas do mesmo jeito que bandidos no Rio jogam spray de pimenta nos olhos da vítima. Para confundir. Obnubilar a razão. Esconder seus projetos desinteressantes e falta de recursos para levar a vida com um discurso dentro do que deveria ser o bom padrão.
Eu desconfio de quem fala com a boca cheia. Não de comida, que tem umas crianças lindas assim. Mas de boca cheia de palavras. Aprendi com o poeta que é preciso usar a faca afiada e enxugar a gordura verborrágica que, por nossa ignorância atávica, fomos acostumados a curtir nos deputados baianos, nos advogados paulistas, nos camelôs cariocas e nos pastores das universais do reino disso e daquilo. Uma das glórias nacionais é o sujeito que “fala bonito”. Geralmente não passa de um perdulário das palavras. Gosta do volume que elas fazem na orelha do próximo. Dá preferência às mais complicadas do dicionário e gosta de juntá-las, uma atrás da outra, nem aí para o fato de não estarem significando senso algum. Então, o que que acontece?!... A grande platéia brasileirinha, que tem como requinte estético o malabarista de circo equilibrando garrafas, reconhece o pseudo-artista do verbo com a nova sardinha no focinho — e vibra invejosa de tanta falsa cultura.
É o país que consagra quem “leva na lábia”, dos mestres na “conversa de cerca Lourenço” e do papo-furado todo fim de noite num bar do Leblon. Alguns preferem imputar bobagens da informática, outros otimizam ridículos da reengenharia do escritório. Todos querem disfarçar com petulâncias acrobáticas ao redor da língua o triste fato de não terem aprendido o que falar com ela. Então, o que que acontece?!.... Esse novo maneirismo pedante, um chamamento da atenção para algo sensacional que estaria prestes a ser dito, um grito de alerta para a possibilidade de ser revelado na frase seguinte o anúncio do terceiro milagre de Fátima ou a dura verdade dos fatos por sua autoridade máxima — esse “então, o que que acontece” é só o zero semântico. O vazio absoluto, o silêncio das línguas cansadas de não ter o que dizer.
Veja bem. Não acontece nada.
(Joaquim Ferreira dos Santos)
A Cemile me mostrou o jornal e disse que eu deveria ler porque o texto era muito bom. Desde então, não consigo me conter quando algum professor solta um "veja bem", "... que que acontece". Acontece que a gente começa a rir e ninguém deve entender nada.
Nem sei se eu falo essas coisas. Sinceramente.
traduzido por Charlene Farias às 10:37 PM
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